Analisar
a democracia no Brasil é um desafio imenso e permanente, feito por aqueles que
acreditam, sinceramente, nos valores e nos ideais democráticos. Ir. Marta Maria
Godoy faz uma interessante análise deste tema à luz das enormes diferenças que
compõem a história e a vida de milhões de brasileiros e brasileiras. Esta
reflexão já foi publicada no site www.neipies.com
e a repercutimos aqui com enorme prazer e satisfação.
“Há, ainda, muitos problemas quanto
a uma possível “democracia à brasileira” – aqui já adianto que não vou me ater
a conceitos – que parecem inviabilizar a superação da desigualdade social e o
enfrentamento da injustiça estrutural que compromete uma grande parte da vida
de nossa gente. E nem preciso me afastar muito de meu cotidiano para constatar
o que afirmo: minha ação na Pastoral Carcerária me mostra a todo momento esse
fato.
Gostaria, porém, de me reportar a um
desses problemas mais especificamente, pois que, a meu ver, ele engloba muitos
outros: trata-se da desigualdade de oportunidades! Sem ela, os maiores esforços
envidados pela possível boa vontade de muitas e muitos (na política partidária
ou não) correm o risco de cair no vazio. Mas o que significa mesmo isso –
desigualdade de oportunidades?
Se
olharmos mais atentamente para nossa história, veremos que a própria composição
do povo brasileiro moldou-se nessa direção, calcada, sobretudo, no não
reconhecimento das diferenças, embora essas diferenças até sejam evidenciadas
quando se quer menosprezar alguém!
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É então que surge a ideia,
equivocada, de que nós vivemos, no Brasil, uma “unidade nacional”. Mesmo idioma
(“quem não sabe falar é burro”!), mesmo tipo humano (“brasileiro é tudo igual,
sempre querendo levar vantagem em tudo”!), mesma história (“do Oiapoque ao
Chuí, eita brasilzão”!), mesmo modelito curricular para as escolas, expedido na
capital federal para todo o país (“criança é criança, igual em qualquer
parte”!) etc.
Esta presumida unidade nacional se
tornou igualmente constitutiva de uma imposição cultural, já que se pauta pelo
preconceito, por um moralismo falseado, por um cristianismo deformado e
excludente, por um absurdo dizer seletivo que, ao absolutizar o que se deve
ser, fazer, dizer, acreditar, descarta tudo e todas e todos que não se
enquandram nos seus modelos. De arrasto, “todos são iguais perante a lei” (Constituição
Brasileira…) e então, está arquitetada oficialmente a “democracia, com
igualdade de direitos e deveres” para todas e todos nós…
Mas,
é mesmo assim?!
Vejamos um exemplo: sobre a questão
do “idioma nacional”. A Linguística (Ciência da Linguagem) se ocupa também de
ajudar a demolir as muralhas do preconceito linguístico instaurado a partir da
pretensa unidade linguística nacional (falamos todos um único idioma – Língua
Portuguesa!). Tal empreendimento, se constante dos programas de ensino, nas
escolas, redundaria numa “democracia linguística nacional”, já que se buscaria
diminuir a resistência em tratar os postulados daquela ciência na prática do
cotidiano, reconhecendo os dialetos, as variações regionais, não como “língua
errada”, passível de ser “corrigida”, mas como um jeito diferente de falar,
como constituinte da língua viva!
E o mais interessante é o que já se
conseguiu apurar a partir da Linguística: o preconceito não é contra “a fala”
da pessoa, mas contra ela mesma, enquanto falante! Destarte, infelizmente,
vemos que uma “democratização linguística” está longe de se consolidar, e nós
sabemos por quê: os lugares sociais estão também determinados (e muito!) pelo
modo de falar! Essa, me parece, é uma das facetas da “democracia à brasileira”
que traz enrustidos os ranços perigosos do “eu sei, tu não sabe, vim te
ensinar”.
Pois
proponho uma análise de democracia a partir das diferenças, o que até pode
parecer paradoxal, já que “todos são iguais blá, blá”…
Há quem diga, inclusive, que o reconhecimento,
a aceitação e a manutenção das diferenças, com vistas à construção da igualdade
de oportunidades, pode se constituir até como chave de desenvolvimento do país!
Ora, vejam só! Dessa forma, o fundo abismo criado em nome de uma suposta igualdade
constitucional, que acaba por se consumar partindo de injustiças estruturais
graves, se torna de alguma forma menos fundo, já que haveria, evidentemente, um
esforço reconhecível empreendido, com reais políticas públicas no rumo das
oportunidades, o que concorreria para que muitos desses abismos, que
“selecionam” as pessoas e barram as oportunidades, viessem a ser paulatinamente
desfeitos.
Os olhares do filósofo Paulo Freire
indicam exatamente esta trilha, quando vem falando desde há mais de 50 anos,
sobre “educação libertadora”, encontrando-se, em determinado trecho, com a
Teologia da Libertação, o que torna ambas as propostas muito atuais e nos
colocam frente a frente com a possibilidade de uma nova forma de democracia!”
Autora: Ir.
Marta Maria Godoy,
Graduada e
pós-graduada em Letras, pós graduanda em Teologia
FONTE: https://www.neipies.com/democracia-a-brasileira-uma-reflexao-sobre-as-diferencas-parte-i/